
A noite já se fez.
A dona beijou o filho, o casal vai jantar fora e, pelo adiantado da hora, o senhor foi se deitar. De repente escureceu mais do que devia. Um apagão. Seria um acontecimento irrelevante, se estivéssemos relatando algo irrelevante. Mas falamos da ausência de luz, e nela as pessoas se transformam. E como se ao erguer da escuridão as jaulas fossem abertas e como bem se sabe o outro lado figura-se num belo convite.
No primeiro momento as pessoas evitam qualquer movimento. Não se sabe se por medo do escuro por cautela antes de deixar fluir seus instintos bizarros.
Aos poucos a pequena cidade surge à meia-luz, ou menos que isso, afinal são apenas as duas ou três velas que estavam guardadas no fundo da despensa de cada uma das casas dali.
Passado um tempo, os que se debruçam na janela para viver um pouco de noite medieval têm suas visões testadas. Passo por passo já contabilizam umas quatro ou cinco pessoas que passaram até então. A maioria aos gritos. Libertadores. Imaginam-se executivos jogando malas para o alto e mudando a voz para maldizer o superior sem se identificar. Mas não. A primeira que passou era a dona, que pusera o filho ainda a pouco para deitar, e agora, dada à situação ia encontrar-se com o ex-marido, com quem na justiça brigava por conta do divórcio, mas nos braços, ainda que parecesse briga, era amor incendiário.
No caminho pelo qual passou a dona, em uma das calçadas, o casal que se preparava para sair preferiu botar duas cadeiras para fora e aproveitar o luar. O rapaz, encantador, tentava sonetos para a mulher, que com um costumeiro sorriso – a única coisa que o rapaz conseguia enxergar no momento – buscava a face do amado para beijá-lo.
Quanto ao senhor, a escuridão lhe devolvera no mínimo vinte anos. Estava na praça, e sentindo cheiro de mulher disparava cortejos dos anos 20.
Depois passaram alguns garotos que gritavam aterrorizando as pessoas de bem (não que os meninos também não o fossem. Mas pelo menos, não estavam) que imaginavam suas casas sendo salteadas em meio à escuridão, e quando voltasse a energia encontrariam apenas a bacia de comida do gato – que também havia sido levado, confundido com um chiuaua.
Bastaram sete minutos de breu para todos os carros com equipamentos sonoros sofisticados, ou não, concentrarem-se na pracinha da cidade. Uma balada ao ar livre. Sem o principal, as luzes de neon. E com um coro em uníssono de mães que percebiam a falta de seus filhos em casa e em vão gritavam: Volta aqui menino!
Uma experiência que mudara toda a logística pacata e ética daquele lugar – pelo menos naqueles instantes.
A ausência de luz invocou um impulso responsável pela criação e libertação de ânsias, desejos, e palavras nunca ditas, que com o tempo transformaram-se num algo estranho e, na escuridão, apresentava-se ao público. Um efeito contrário a inocência revelada à passagem da banda*.
Mas logo a luz da cidade reacendeu e tudo voltou ao normal.
. Daniel Aguiar
Para entender melhor(para quem não sabia):
*“A banda”, música de Chico Buarque, que conta a reação de uma cidade ao ver passar a banda “cantando coisas de amor”. Segue link da letra.
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45099/