quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Poesia Cuspida

Essa tarde, enquanto passeava pelo parque, algo me incomodava. Eram uns restos de poesia que não degluti, e cuspo agora no chão. Sem a menor pretensão. Mas um ato inconseqüente.
Afinal, logo passa alguém, pisa nas frases e as leva em seu sapato.
Ao chegar em casa esse alguém limpa os sapatos no tapete onde o cachorro costumeiramente dorme. Pela manhã o cão saúda o carteiro latindo meus versos de amor, que grudam na bolsa com correspondências. Ao sacar um envelope para deixá-lo numa caixa de correio, o rapaz esbarra-o nas letras soltas grudadas na bolsa. A pessoa que recebe a carta – e a esperava aflita – não consegue entender, mas sorri. Ela esperava, e na verdade era assim, que as folhas trouxessem escrito um desabafo do namorado, cansado das pressões e também da carência da namorada. Além claro de esperar que o bilhete deixasse claro o fim do relacionamento. Porém, as letras se reorganizaram. E os olhos aflitos puderam ler uma das mais belas declarações de amor e juras de eternidade.
O irmão mais novo da moça encontrou a carta e decidiu extrair alguns trechos para tentar a sorte com uma aspirante a namoradinha. Foi uma festa de prosa, poesia e adolescência. Após transcritas, as letras brincavam entre si. O amor iminente (coisa de adolescente) sofreu mudança quando um ‘e’, no pique-pega, derrubou e tomou o lugar do primeiro ‘i’.
A cartinha foi entregue e com ela a poesia foragida continuava a menear, e logo que o papel foi solto na mesa, as letras saltaram para outra folha – um contrato, do pai da menina.
Dessa vez os sinais gráficos saíram do limite. Mexeram em coisa importante. E foi apenas o primeiro grande passo. Agora, sem escrúpulos os antigos versos, calmos e aconchegantes, representavam um grande perigo, e seria questão de tempo até convocarem uma guerra mundial.
Mas isso é história para outras palavras a deglutir. O melhor agora é juntar a poesia do chão, retorná-la à boca e engolir com água. Antes que passe alguém e as leve nos pés.
Aliás, a tarde não está muito boa para poesia.

Daniel Aguiar

quinta-feira, 15 de julho de 2010

[microconto] APAGÃO!


A noite já se fez.
A dona beijou o filho, o casal vai jantar fora e, pelo adiantado da hora, o senhor foi se deitar. De repente escureceu mais do que devia. Um apagão. Seria um acontecimento irrelevante, se estivéssemos relatando algo irrelevante. Mas falamos da ausência de luz, e nela as pessoas se transformam. E como se ao erguer da escuridão as jaulas fossem abertas e como bem se sabe o outro lado figura-se num belo convite.
No primeiro momento as pessoas evitam qualquer movimento. Não se sabe se por medo do escuro por cautela antes de deixar fluir seus instintos bizarros.
Aos poucos a pequena cidade surge à meia-luz, ou menos que isso, afinal são apenas as duas ou três velas que estavam guardadas no fundo da despensa de cada uma das casas dali.
Passado um tempo, os que se debruçam na janela para viver um pouco de noite medieval têm suas visões testadas. Passo por passo já contabilizam umas quatro ou cinco pessoas que passaram até então. A maioria aos gritos. Libertadores. Imaginam-se executivos jogando malas para o alto e mudando a voz para maldizer o superior sem se identificar. Mas não. A primeira que passou era a dona, que pusera o filho ainda a pouco para deitar, e agora, dada à situação ia encontrar-se com o ex-marido, com quem na justiça brigava por conta do divórcio, mas nos braços, ainda que parecesse briga, era amor incendiário.
No caminho pelo qual passou a dona, em uma das calçadas, o casal que se preparava para sair preferiu botar duas cadeiras para fora e aproveitar o luar. O rapaz, encantador, tentava sonetos para a mulher, que com um costumeiro sorriso – a única coisa que o rapaz conseguia enxergar no momento – buscava a face do amado para beijá-lo.
Quanto ao senhor, a escuridão lhe devolvera no mínimo vinte anos. Estava na praça, e sentindo cheiro de mulher disparava cortejos dos anos 20.
Depois passaram alguns garotos que gritavam aterrorizando as pessoas de bem (não que os meninos também não o fossem. Mas pelo menos, não estavam) que imaginavam suas casas sendo salteadas em meio à escuridão, e quando voltasse a energia encontrariam apenas a bacia de comida do gato – que também havia sido levado, confundido com um chiuaua.
Bastaram sete minutos de breu para todos os carros com equipamentos sonoros sofisticados, ou não, concentrarem-se na pracinha da cidade. Uma balada ao ar livre. Sem o principal, as luzes de neon. E com um coro em uníssono de mães que percebiam a falta de seus filhos em casa e em vão gritavam: Volta aqui menino!
Uma experiência que mudara toda a logística pacata e ética daquele lugar – pelo menos naqueles instantes.
A ausência de luz invocou um impulso responsável pela criação e libertação de ânsias, desejos, e palavras nunca ditas, que com o tempo transformaram-se num algo estranho e, na escuridão, apresentava-se ao público. Um efeito contrário a inocência revelada à passagem da banda*.
Mas logo a luz da cidade reacendeu e tudo voltou ao normal.

. Daniel Aguiar


Para entender melhor(para quem não sabia):
*“A banda”, música de Chico Buarque, que conta a reação de uma cidade ao ver passar a banda “cantando coisas de amor”. Segue link da letra.
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45099/

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dica da Semana


(Teatro)Gota D'água - Chico Buarque / Paulo Pontes

"Dividida em dois atos, Gota d'Água espelha uma tragédia urbana, banal nos grandes centros, nas favelas do Rio de Janeiro, onde está ambientada; os sets retratam um botequim, local de encontro dos homens e, ao lado, o set das lavadeiras, onde as personagens femininas conversam. No set da oficina, está o velho Egeu, e onde passam alguns amigos.

Retrata as dificuldades vividas por moradores de um conjunto habitacional, a Vila do Meio-Dia, que na verdade são o pano-de-fundo para o drama vivido por Joana e Jasão que, tal como na peça original, larga a mulher para casar-se com Alma, filha do rico Creonte." (wikipedia)

O texto é envolvente e nos coloca como se observássemos de perto cada situação apresentada. A vontade que dá é de, ou chamar os amigos e montar a peça, ou procurar onde ela está sendo encenado e ir conferir. Além disso, o tema é contemporâneo e nos apresenta uma sociedade nada distante da nossa.

Uma obra prima dos mestres Chico Buarque e Paulo Pontes.

Número de Paginas : 174
Publicação : 1998


No youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=sqBN4EsQT1g (Bibi Ferreira em cena/comentários de Chico Buarque)

http://www.youtube.com/watch?v=cUSXdx05Yeo (Chico Buarque canta Gota D'água)

Dica da Semana 2

"O wikiHow é um projecto de escrita colaborativa para produzir o maior manual de como fazer do mundo."
Essa dica é mais a título de curiosidade. Vale a pena procurar como fazer coisa inusitadas, engraçadas e até mesmo práticas como sugerem alguns artigos, como por exemplo "Como Terminar uma Discussão em Trinta Segundos".

Visitem!
http://pt.wikihow.com

Dica da Semana


O CRIME DO PADRE AMARO(FILME.2002)

Elenco: Gael García Bernal, Ana Claudia Talancón, Sancho Gracia, Angélica Aragón, Luisa Huertas, Ernesto Gómez Cruz.

Sinopse

O jovem padre Amaro (Gael García Bernal) acaba de ser ordenado e em breve irá para Roma continuar seus estudos, graças à boa relação que mantém com o bispo. Antes, contudo, deve trabalhar em uma paróquia. Ele é enviado para Los Reyes para atuar sob as ordens do padre Benito (Sancho Gracia), o vigário que aparentemente vive uma existência corrupta e contraditória. Lá Amaro conhece a linda e devota Amelia (Ana Claudia Talancón), filha de Sanjuanera (Angélica Aragón), dona do restaurante mais importante da cidade e amante do padre Benito. Diante do mundo real, Amaro é confrontado com a hipocrisia da Igreja, que condena as guerrilhas mas convive com chefes do tráfico de drogas.

EXCELENTE!

sexta-feira, 2 de julho de 2010

[microconto]UM BREVE RELATO DE AMOR (começo/meio/FIM)

Mais uma vez sem êxito o sol tentou me despertar. Já não era necessário. Vigiei a lua toda a noite e pus as estrelas para dormir contando mais uma vez minha, mal resolvida, vida amorosa.
- Um amor feito balanço de brisa – dizia eu.
Aproveitei a deixa luminosa para me levantar e tomar meu desjejum.
Um copo de suco de graviola de ontem e um pão dormido – que em seu leito certamente descansara mais que eu. Parecia a primeira refeição daquele mesmo dia em que a encontrei - com olhos de Eros.

Como já tocamos no assunto aproveito para relembrar essa história e compartilhá-la como vocês. Aliás, ter outro alguém além de estrelas para conversar é bom (não sendo você Bilac).

Omitindo o período que compreende o primeiro encontro e o cultivo da amizade, começo ressaltando que já não podia conceber a idéia de tê-la tão perto, e ainda assim, tão longe de mim. Meu coração sentia-se feito cego quando não a sentia próxima. A impaciência tomava meu ser à espera de vê-la.

Não estou abusando do lirismo. Mas não há outra forma de discorrer sobre amor sem amor.

Aos poucos meu olhar encontrava-se com o dela e nos enamorávamos, ou melhor, eu a enamorava até então.
Quando já não podia mais agüentar, decidi ser mais claro, e valeu-me Vinicius de Moraes e Carlos Lyra. Mandei para ela um e-mail com seguinte conteúdo:

“Se você quer ser minha namorada
Ai que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ter
Você tem que me fazer
Um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê
E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo
Em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
E os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem de ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois”

Aceita?

O resultado foi uma visita à sua casa, um discurso paternal, e o primeiro de muitos beijos apaixonados.
Durante todo esse tempo juntos, o tempo foi mais valorizado, e cada minuto parecia uma eternidade, impossível de ser contado – e nem tínhamos a pretensão.
Mas toda a tranqüilidade primitiva parecia ser interrompida pelos percalços que se revelavam. Tempo, distância, por momentos até mesmo falta de querer compreender, e a concessão que não fazia parte da iniciativa de nenhum dos dois.

Por vezes nossa seqüência lógica fora: Juntos. Separados. Juntos. Separados. Juntos. Separados. Separados. Juntos. Separados. Separados. Separados. Jun...
E então, aquele encanto, que eu quis negar um tanto, mas lutei para concretizá-lo, figurava-se em algo que escapava da minha ordem.
Assim, por dias hesitei em lhe dedicar poesias como de costume, e mesmo sem querer escrevia sobre nós.

Cessam as palavras, permanecem as ações.
Talvez meus dedos corram, tendo uma caneta em poder,
E então...Acontece, não posso os controlar.
E eles não são os únicos que fogem do meu controle.

Já lhe dei a menina do sorriso, do olhar, de meus anseios.
Já imortalizei o momento em palavras, e
Regozijaria em tê-lo imortal em um beijo,
No suprimo do desejo.
Por nós


E envolto em meus manuscritos não pude perceber sua retirada à francesa. E já era tarde.
Por mais problemas que houvesse nossa combinação era forte, e por isso, talvez, até as força da natureza pelejaram para quebrar algo que seria mais belo que elas.

E hoje, na solidão, como dizia Tom Jobim, “ainda custo a entender como o amor foi tão injusto a quem só lhe foi dedicação.”

Devo confessar, contudo, que, ainda ontem, resistindo à madrugada me surpreendi tecendo mais uma declaração para nosso grande amor. E não espero resposta imediata. Na verdade nem sei mesmo se aguardo alguma resposta. Mas que fique registrado:

Passou assim por mim – que nem me viu -,
Mas eu olhei, e foi só o que bastou para eu decorar o que sempre sonhei.
Enfim, eu te encontrei.

Mais perto de você eu preciso estar,
O seu perfume eu quero sentir.
Todos os teus dias eu prometo alegrar.
Prometo amar-te e lhe fazer feliz.

Ter o teu amor será o meu prazer, e
Todo o meu amor lhe entrego. É teu.
E a todos eu direi, em alta e sonante voz:
“Eis a minha menina, o meu eterno amor,
Que é terno, ardente, novo, e alumiado”.

E com grande certeza, sempre lhe confirmarei:
“Sou teu fiel, singelo e eterno amante”.
Por ti a cada novo dia,
Eu sempre me apaixonarei.

Por nós.


Talvez algum dia chegue até você essa última declaração. Talvez.

O cansaço toma meu corpo. É Morfeu que não me visitava a tempos e anuncia sua chegada. Mas eu, como de costume, reluto.
Nessa hora o sol invadia meu quarto quando eu ainda insistia com as estrelas:
- Um amor feito balanço de brisa.

Daniel Aguiar

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Saramago! (DICA DA SEMANA)




No dia 18 de Junho de 2010 morreu o promissor autor José Saramago. O escritor português sofria de leucemia além de, nos últimos anos, ter sido internado por diversas vezes devido à problemas respiratórios.
Quem conhecia sua vida e obra sabe o tamanho da perda. Para quem não conhecia vale à pena experimentar a sensação de entrar no universo de Saramago. Por isso, a dica dessa semana é a leitura de seu romance "ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA", narrando sobre uma epidemia - cegueira branca - "metáfora da cegueira social". Acima de tudo, a leitura contribui para a reflexão, fazendo-nos meditar sobre até quando(sob que circunstâncias) o homo sapiens sapien é realmente sapiens sapiens. Outra dica é a leitura minuciosa, atenta a todos os detalhes expostos, o que contribui para a compreensão da temática abordada.

Características do Livro

Número de Paginas : 312
Idioma : Português(Portugal)
Editora: Companhia das Letras
Vale lembrar que Saramago foi o único autor da língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel de Literatura(1998)

p.s:
O cineasta brasileiro Fernando Meireles fez a adaptação de Ensaio sobre a cegueira para o cinema. Um trabalho excelente, e que carrega realmente a alma do livro. O que chama atenção nessa adaptação é que Saramago sempre teve aversão por adaptações de suas obras, porém Meireles conseguiu. Tudo indica que foi aprovadíssimo. Ao final da apresentação do filme José Saramago estava emocionado.

http://www.youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY (José Saramago assiste Ensaio Sobre a Cegueira - BLINDNESS)

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